Ana Paula Oliveira estreou em 2001 e atuou até
2008 (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
Ser e ter. Palavras que se diferem por apenas uma letra, separadas por
um abismo de significado e que resumem bem a vida de uma paulistana de
34 anos. Ana Paula Oliveira tem fama, beleza e um dos recordes de venda
da revista Playboy, com 334.277 exemplares. Mas ela prefere ser. Foi a
primeira mulher a participar de uma final de Campeonato Paulista, em
2003 – repetiu o feito mais duas vezes. De uma decisão de Copa do
Brasil, em 2006. É a primeira brasileira eleita árbitra revelação dos
Jogos Olímpicos, em Atenas-2004. Isso sem contar Libertadores,
Sul-Americana...
Diante de um currículo invejável para muito marmanjo, ela pode se dar
ao luxo de abandonar um sonho para ser o que sempre quis. Ainda com
lenha para queimar, Ana Paula até tem condições de voltar ao futebol
profissional, mas enche a boca para dizer: é a mais nova aposentada do
mundo da bola.
Filiada ao quadro de árbitros da Federação Paulista de Futebol (FPF)
até dezembro deste ano, a bandeirinha mais famosa do Brasil guardou por
muito tempo o sonho de representar o país na Copa do Mundo de 2014. Mas
hoje, como tantos outros atacantes flagrados por ela em quase uma década
de carreira, está impedida de realizar o desejo. Apesar de manter a
paixão pelo esporte, sua cabeça agora está em outro lugar. Lugares...
A ex-bandeirinha tem várias ocupações. Virou estudante – cursa
pós-graduação em jornalismo esportivo na PUC-Campinas e será aluna
especial da Unicamp em breve; comentarista – participa de um programa de
esportes em uma televisão de Belo Horizonte; empresária – possui uma
agência de comunicação e trabalha como editora de uma revista digital de
esportes. Ou seja: futebol segue na veia da garota criada entre Sumaré e
Hortolândia e que deu os primeiros passos da carreira aos 14 anos. Mas
não mais na lateral do campo.
– Para mim, chega. Aposento-me oficialmente este ano. Não quero mais.
Eu poderia voltar. A Federação Paulista me deu todas as condições
possíveis para voltar. Mas não basta voltar, tem que saber que você será
aproveitada, que não passará por boicote. E hoje não tenho essa
segurança. Tenho 34 anos e, se eu demorar muito para me decidir, não vou
ter tempo de me fixar em outra profissão, de amadurecer como
jornalista. Para ser assistente, precisa de tempo de estudo, de
aprendizado, de prática. Se eu demorar nesta decisão, não vou ter tempo
para crescer.
Ana Paula: presença em finais de Paulistão e Copa do Brasil (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
Começo na várzea, consagração nos campos
Crescimento, aliás, é algo que Ana Paula está mais do que acostumada.
Criada no meio do futebol de várzea, a garota de 14 anos sempre
acompanhou o pai, árbitro amador, em jogos de bairros nos fins de
semana. A paixão virou profissão. Apesar de ter feito duas faculdades
(administração e jornalismo), ela entrou no esporte para valer em 2001,
quando se filiou à Federação Paulista de Futebol e fez sua estreia no
Estadual.
Depois de superar o preconceito do próprio pai, que não queria a filha
trabalhando no futebol profissional, ela atingiu o auge em 2003, naquele
que considera o maior ano de sua carreira. Bandeirou a final do
Campeonato Paulista entre Corinthians e São Paulo, vencida pelo Timão.
Depois disso, virou figurinha carimbada em grandes jogos até o primeiro
semestre de 2007, não só do Paulistão, mas também de Brasileiro e
competições internacionais.
– Eu fiz tudo que uma mulher poderia fazer na minha carreira. Eu fiz
três finais de Paulistão (2003, 2004 e 2007), o Superpaulistão (2002),
final da Copa do Brasil de 2006, mais todos os clássicos do Brasil,
desde Ba-Vi até todos os de São Paulo. Fui aplaudida de pé em um
Gre-Nal, fui para a Libertadores da América, Olimpíadas... Se parar para
analisar, só faltou no meu currículo a Copa. Tem gente com 25 anos de
carreira que não fez o que eu fiz na minha trajetória profissional.
Ana Paula Oliveira foi capa da Playboy em julho de
2007 (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
Erros na Copa do Brasil, insultos e ensaio nu aumentam a fama
Dois mil e sete era o ano para alavancar a carreira de Ana Paula.
Depois de representar o país nos Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, ela
teria um bom tempo para focar no maior sonho profissional: a Copa do
Mundo de 2014, que acabara de ser confirmada para o Brasil. Mas a
temporada para consolidar a principal assistente do futebol brasileiro
acabou manchando sua trajetória.
Tudo começou em maio, mais especificamente no dia 23, no Maracanã, em
uma das semifinais da Copa do Brasil. No maior templo esportivo do país,
Ana Paula Oliveira virou uma das protagonistas da eliminação do
Botafogo para o Figueirense. O time carioca venceu por 3 a 1, mas teve
dois gols anulados pela bandeirinha. A saída precoce da competição
irritou os cartolas botafoguenses, especialmente o vice de futebol
Carlos Augusto Montenegro, que disparou contra a assistente.
– Ela é totalmente despreparada. Errou dois lances seguidos. Não vejo
mulher em Copa do Mundo, não vi mulher na final da Liga dos Campeões,
nem nas decisões mais importantes do mundo, mas colocaram uma mulher
hoje, justo contra o Botafogo, que nos deu um prejuízo de R$ 2,5
milhões, além da tristeza e sofrimento da torcida e abatimento dos
jogadores – disse o cartola.
Cinco anos depois, Ana Paula admite a noite ruim no Maracanã, que a tornou a principal personagem da derrota do Botafogo.
– Aquele episódio não foi nada mais do que uma noite infeliz da
assistente Ana Paula Oliveira. Eram dois lances muito complicados para o
auxiliar. Fiz as escolhas e tudo aconteceu, mas não houve nada
premeditado. O Montenegro, depois da partida, se exaltou um pouco, mas
depois até pediu desculpas.
Abatida pelos erros na semifinal, Ana Paula decidiu aceitar a sétima
investida da Playboy para tê-la em sua capa na edição de julho. Depois
de seis recusas, a paulista pediu licença de dois meses para a Federação
e a CBF e fez o ensaio, que lhe rendeu uma boa quantia.
– A Playboy me deu dinheiro, mas a Federação Paulista e a CBF, não.
Claro que eles me deram reconhecimento, mas isso só foi possível porque
eu fui competente. Quantas mulheres não vieram antes e depois da Ana
Paula e não conseguiram uma sequência? Foi uma soma boa para as duas
partes – explica, anos depois, sem se arrepender pelo ensaio.
– Certamente faria de novo. Não tenho vergonha do que conquistei, do
que alcancei. Para quem já foi feirante, camelô, vendeu laranja...
Quadro no escritório com uma das fotos do ensaio para a Playboy (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
Polêmicas e fim do sonho
Fim da divulgação da revista, volta aos campos. O trajeto parecia
fácil, mas foi aí que tudo na vida profissional de Ana Paula se
complicou. Para retornar ao quadro de árbitros, a musa foi submetida a
testes físicos, protocolo que, segundo ela, nunca foi feito com ninguém.
Sem muito tempo para treinar e convivendo com uma lesão, Ana Paula foi
reprovada e amargou meses de inatividade. Sem a bandeira, o jeito foi se
apegar à fama da revista e aproveitar para fazer dinheiro.
O retorno ao futebol profissional aconteceu no Campeonato Paulista de
2008. Aprovada nos exames, ela participou de quatro jogos e foi indicada
para bandeirar a semifinal entre Guaratinguetá e Ponte Preta, na qual o
time de Campinas se classificou à decisão. O bom desempenho fez Ana
Paula cumprir uma promessa feita a amigos: tatuar uma fênix na parte
direita do quadril. Mas a ressurreição não estava completa. Para
recuperar o escudo Fifa, a bandeirinha precisava ser aprovada no teste
físico marcado para junho.
– Prometeram que, se eu passasse neste teste, voltaria em 2009 com o
escudo da Fifa. Aí não teve jeito: eu parei minha vida neste ano por
causa do teste. Treinava de madrugada, de manhã, à noite, quase não
dormia. Além disso, paguei para trabalhar em 2008, porque só me
escalaram em jogos pequenos, em estádios sem vestiário ou estrutura
nenhuma. Para ter uma ideia, tinha que comprar minha própria água no
intervalo.
Lembranças da carreira profissional de Ana: de bolas a revistas (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
Na semana da bateria da Fifa, uma surpresa: Ana Paula estava escalada
para bandeirar a final do Campeonato Paraense, entre Remo e Paysandu. O
jogo em Belém era num domingo e o teste, na segunda-feira, no Rio de
Janeiro. A paulista, para não perder a chance, se desdobrou. Fez a
decisão, pegou o primeiro voo à Cidade Maravilhosa, dormiu poucas horas e
partiu para os exames. Era hora da prova real.
– Os árbitros precisavam dar 20 voltas em um campo oficial. Na 13ª,
juro que pensei em desistir. Não aguentava mais. Não sei de onde tirei
força para mostrar que não estava machucada como tinham falado. Só sei
que completei o percurso e saí de lá aplaudida.
O que era para ser o retorno ao futebol, virou novo motivo de
frustração. A partir desse teste, a CBF oficializou uma nova regra, de
que as mulheres deveriam ser submetidas aos testes masculinos. Só assim
teriam condição de bandeirar ou apitar jogos do Campeonato Brasileiro.
Com a nova legislação, Ana Paula não se enquadrou. Fez os testes, mas,
reprovada, abriu mão de continuar a carreira.
Musa com o anuário do LivrEsportes, sua revista
digital (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)
"Até dava para voltar, mas..."
O fim da passagem da mais bela bandeirinha do futebol brasileiro pelos
gramados resultou no início de uma nova trajetória. Ana Paula continuou
com o esporte na veia, mas virou árbitra de jogos festivos (apitou uma
edição do jogo das Estrelas, anualmente realizado por Zico no Brasil) e
amadores. Assim, ganhou tempo para estudar: se formou em jornalismo,
abriu um site, editou a revista LivrEsporte (que chegou a ser premiada
no Intercom), participou de um reality show, virou comentarista e
apresentadora... parada, ela nunca fica.
Mas o gosto amargo ainda está nas palavras de Ana Paula. Ao lembrar de
toda a carreira – desde os bons tempos e as finais que participou, até o
que considera o “processo de fritura” a partir de 2007 –, ela não se
mostra arrependida de nada, mas sabe que poderia chegar mais longe, se
houvesse mais apoio. Como sempre, na vida da paulista que saiu da várzea
para embelezar os estádios, o ter e o ser estiveram presentes.
– Se tivessem acreditado um pouco mais na garota, talvez nosso país
teria escrito história, mais do que já escreveu. Se a CBF me convidasse
hoje, daria para ir para a Copa. Mas teriam que apostar em mim como
fazem com um atleta de ponta. Teria que ter ajuda de custo, um treinador
específico e o apoio necessário, que nunca houve. O Brasil poderia ser o
primeiro país que colocaria uma mulher competente em uma Copa do Mundo.
Mas não deu. Acho que não era para ser.
Paulista em seu escritório: jornalista, estudante e empresária (Foto: Guto Marchiori / Globoesporte.com)